quarta-feira, 21 de maio de 2025

O ESPELHO NEGRO DA INFORMAÇÃO: CARAVAGGIO E O NARCISO DE 1598-1599 PROSA POÉTICA DE ALBERTO ARAÚJO


Nas profundezas silenciosas de 1598, talvez 1599, Caravaggio mergulhou no mito de Narciso, não para apenas pintá-lo, mas para nos oferecer um espelho, sombrio e implacável, sobre a essência da informação em nossa era. Em sua tela, o jovem Narciso se inclina sobre a água, sua pele iluminada por uma fonte de luz invisível, seu olhar fixo na própria imagem. É um instante de hipnose, de rendição. 

Não vemos a beleza da água, apenas a superfície que reflete, com uma fidelidade quase perturbadora, a figura solitária. Assim é a informação hoje: um vasto corpo de dados que se oferece para ser consumido, um fluxo incessante que nos convida a inclinar a cabeça. O que buscamos? A clareza do nosso próprio entendimento, a validação de nossas crenças, a confirmação de nossa existência no universo digital.

A mão de Narciso, quase alcançando o reflexo, é a mão de quem desliza pelo feed, busca no buscador, rola a tela. É o desejo insaciável de interagir com a própria imagem reverberada, de tocá-la, de fazê-la real. Mas, como no quadro, o toque é sempre inalcançável. A informação, por mais que a absorvamos, mantém sua distância, um eco frio e perfeito de nós mesmos.

O fundo escuro de Caravaggio, quase um abismo, engole o entorno, focando nossa atenção no drama do reflexo. Da mesma forma, a torrente informacional muitas vezes obscurece o mundo real, as nuances, as verdades complexas que se escondem para além da superfície. Ficamos presos no brilho imediato, na notícia que impacta, na imagem que nos seduz. 

E a solidão de Narciso? É a solidão do indivíduo submerso na informação. Por mais conectados que estejamos, por mais dados que nos cerquem, a experiência de assimilar e interpretar é, em sua essência, singular e isolada. Olhamos para a tela, para o reflexo, e vemos apenas a nós mesmos, projetados e multiplicados. 

Caravaggio, com sua maestria das sombras e da luz, nos alerta. A beleza da informação é inegável, seu poder de nos atrair é irresistível. Mas, se nos perdermos demais nesse reflexo, se a busca incessante por nosso próprio eco nos cegar, corremos o risco de definhar, como Narciso, em um abraço fatal com a própria imagem. A informação, em sua essência, é um espelho. Cabe a nós decidir o que refletimos e, mais importante, o que vemos além dele.

© Alberto Araújo

 


A TELA DE CARAVAGGIO, capturando o instante melancólico de Narciso absorto em seu reflexo nas águas escuras de 1597-1599, ressoa de maneira inquietante com a nossa relação contemporânea com a informação. Mais do que uma mera ilustração de um mito clássico, a pintura se torna uma poderosa alegoria da nossa fixação no espelho digital que construímos.
 

O jovem Narciso, com seu elegante gibão de brocado, inclina-se sobre a superfície aquática, assim como nós nos debruçamos sobre as telas luminosas de nossos dispositivos. Seu olhar fixo e absorto no próprio reflexo distorcido ecoa a nossa busca incessante por validação e reconhecimento no universo digital. A informação, nesse sentido, torna-se o espelho onde incessantemente buscamos a confirmação de nossa identidade, de nossas opiniões, de nossa própria existência. 

A escuridão que envolve a cena pintada por Caravaggio, isolando Narciso em seu ciclo de autoadmiração, metaforiza o isolamento paradoxal da era da informação. Mergulhados em um fluxo constante de dados e conexões virtuais, podemos nos encontrar ilhados em bolhas informacionais, cercados apenas pelos ecos de nossas próprias preferências e crenças. A vastidão da informação, ironicamente, pode nos aprisionar em um ciclo vicioso de autorreferência, obscurecendo a diversidade de perspectivas e a complexidade do mundo real. 

A mão de Narciso, estendida em direção à imagem na água, mas jamais a alcançando, simboliza a natureza intangível e, por vezes, ilusória da informação. Buscamos a verdade, a clareza, a conexão genuína, mas muitas vezes nos deparamos apenas com uma superfície fluida e escorregadia, uma representação que, por mais nítida que pareça, permanece sempre a uma distância inatingível. 

Como observou Leon Battista Alberti, o mito de Narciso poderia ser visto como a própria invenção da pintura, o ato de aprisionar a superfície da água através da arte. Na era digital, a informação se torna essa superfície espelhada, constantemente recriada e reinterpretada. Corremos o risco, como o trágico Narciso, de nos apaixonarmos pela nossa própria imagem refletida nesse espelho informacional, negligenciando a profundidade e a complexidade do mundo que existe além da superfície. 

A advertência de Tommaso Stigliani sobre o "final infeliz daqueles que amam demais suas coisas" ressoa com a nossa dependência da informação como um fim em si mesmo. A busca incessante por dados, por atualizações, por validação online pode nos consumir, nos afastando da experiência direta, da reflexão genuína e da conexão humana autêntica. 

A obra de Caravaggio, portanto, nos convida a uma reflexão profunda sobre a nossa relação com a informação. Somos Narciso à beira de um lago digital, fascinados por nosso próprio reflexo? Ou podemos aprender a desviar o olhar da superfície, a mergulhar nas profundezas, a buscar a verdade e a compreensão para além do espelho fugaz da informação? A resposta reside na nossa capacidade de equilibrar a busca por conhecimento com a sabedoria da contemplação e a urgência da conexão real.

© Alberto Araújo 


 

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