Ela não
espera que eu deposite apenas a matéria-prima da pesca, deixando para trás o
rastro úmido e o odor característico. Nosso ateliê noturno não se limita à tela
e ao pincel, mas se expande à bancada da pia, onde a arte se manifesta na dança
silenciosa de nossos corpos próximos.
Qualquer hora da noite vai me encontrar ao seu lado,
não como um mero espectador, mas como um cocriador desse ritual íntimo.
Enquanto a água murmura e a faca encontra a resistência da escama, nossos
cotovelos se roçam, um toque breve e carregado de significado. Gosto dessa
colisão fugaz, dessa certeza física da sua presença, da nossa proximidade que
transcende as palavras.
Observo seus movimentos precisos enquanto prepara o
peixe, cada gesto uma pincelada na tela efêmera da nossa ceia. Há uma beleza
singular em vê-la transformar o fruto do rio em alimento para nós dois. E
então, a narrativa da minha jornada aquática se mistura ao aroma inconfundível
que emana de suas mãos. "Este peixe lutou com a bravura das suas cores
vibrantes, meu amor, resistindo antes de se entregar à minha linha". Meus
braços gesticulam, tentando pintar no ar a energia selvagem da natureza que
encontrei.
Mas é no tempero que reside a sua assinatura única,
o toque que transforma o simples em extraordinário. A cebola, o coentro, o
molho de tomate... cada especiaria escolhida com a mesma intuição que guia seus
traços na tela. Aquele sabor é nosso, inimitável, a marca da nossa união.
Os peixes, enfim, repousam na travessa, mais que
alimento, uma obra conjunta, testemunha da nossa cumplicidade. E ao nos
recolhermos, sinto que as cores da nossa arte se entrelaçam, criando novas
nuances em nosso universo particular. Na quietude do nosso quarto, somos
novamente aqueles dois artistas curiosos, redescobrindo a beleza nos pequenos
encontros, no sabor único do nosso amor, na certeza silenciosa de nossos
cotovelos que se tocam. Minha artista, minha musa, minha eterna noiva,
temperando cada instante da nossa vida com sua arte singular.
© Alberto
Araújo
CASAMENTO - POESIA DE ADÉLIA PRADO
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
REFLEXÃO SOBRE A POESIA ‘CASAMENTO’ DE ADÉLIA PRADO
Nesta
tocante poesia, Adélia Prado explora a profundidade e a intimidade singela de
um casamento através de um ato cotidiano: limpar peixes. A voz poética se
diferencia de outras mulheres que delegam essa tarefa a seus maridos,
preferindo, em vez disso, compartilhar o momento, mesmo que seja no meio da
noite.
A
cozinha se torna um espaço de cumplicidade silenciosa, onde os esbarrões de
cotovelo e as palavras sobre a pesca criam uma conexão única entre o casal. As
lembranças do primeiro encontro permeiam o ambiente, um rio profundo de
sentimentos que ressurge na quietude da noite.
Em
seus versos, Adélia Prado nos convida a mergulhar na essência de um casamento
que transcende as expectativas tradicionais. A narradora se distancia daquelas
que impõem tarefas domésticas a seus cônjuges, escolhendo, ao contrário,
participar ativamente de um ritual aparentemente simples: a limpeza dos peixes
pescados pelo marido.
Essa
escolha revela uma busca por intimidade e conexão. A cozinha, no silêncio da
noite, se transforma em um palco onde a cumplicidade se manifesta nos gestos
cotidianos o roçar dos cotovelos, as palavras sobre a luta com o peixe, a descrição
vívida de seus movimentos. Essas pequenas interações tecem uma tapeçaria de
afeto, onde a memória do primeiro encontro flui silenciosamente, como um rio
profundo que nutre a relação.
O
ato final de preparar os peixes e se recolher para o descanso ganha uma
dimensão poética. As "coisas prateadas" que "espocam"
simbolizam a faísca do amor que se reacende, a constante renovação dos votos
implícitos no convívio diário. A imagem de serem "noivo e noiva"
sugere que, mesmo na rotina, o frescor do início do relacionamento permanece
vivo, celebrando a beleza e a profundidade encontradas nas partilhas mais
humildes da vida a dois.
© Alberto
Araújo
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