sábado, 10 de maio de 2025

A PALETA DA MADRUGADA E O TOQUE ÚNICO PROSA POÉTICA DE ALBERTO ARAÚJO PARAFRASEANDO A POESIA “CASAMENTO” DE ADÉLIA PRADO

 

Ela não espera que eu deposite apenas a matéria-prima da pesca, deixando para trás o rastro úmido e o odor característico. Nosso ateliê noturno não se limita à tela e ao pincel, mas se expande à bancada da pia, onde a arte se manifesta na dança silenciosa de nossos corpos próximos.

Qualquer hora da noite vai me encontrar ao seu lado, não como um mero espectador, mas como um cocriador desse ritual íntimo. Enquanto a água murmura e a faca encontra a resistência da escama, nossos cotovelos se roçam, um toque breve e carregado de significado. Gosto dessa colisão fugaz, dessa certeza física da sua presença, da nossa proximidade que transcende as palavras.

Observo seus movimentos precisos enquanto prepara o peixe, cada gesto uma pincelada na tela efêmera da nossa ceia. Há uma beleza singular em vê-la transformar o fruto do rio em alimento para nós dois. E então, a narrativa da minha jornada aquática se mistura ao aroma inconfundível que emana de suas mãos. "Este peixe lutou com a bravura das suas cores vibrantes, meu amor, resistindo antes de se entregar à minha linha". Meus braços gesticulam, tentando pintar no ar a energia selvagem da natureza que encontrei.

Mas é no tempero que reside a sua assinatura única, o toque que transforma o simples em extraordinário. A cebola, o coentro, o molho de tomate... cada especiaria escolhida com a mesma intuição que guia seus traços na tela. Aquele sabor é nosso, inimitável, a marca da nossa união.

Os peixes, enfim, repousam na travessa, mais que alimento, uma obra conjunta, testemunha da nossa cumplicidade. E ao nos recolhermos, sinto que as cores da nossa arte se entrelaçam, criando novas nuances em nosso universo particular. Na quietude do nosso quarto, somos novamente aqueles dois artistas curiosos, redescobrindo a beleza nos pequenos encontros, no sabor único do nosso amor, na certeza silenciosa de nossos cotovelos que se tocam. Minha artista, minha musa, minha eterna noiva, temperando cada instante da nossa vida com sua arte singular.

© Alberto Araújo




CASAMENTO - POESIA DE ADÉLIA PRADO

Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

REFLEXÃO SOBRE  A POESIA ‘CASAMENTO’ DE ADÉLIA PRADO

Nesta tocante poesia, Adélia Prado explora a profundidade e a intimidade singela de um casamento através de um ato cotidiano: limpar peixes. A voz poética se diferencia de outras mulheres que delegam essa tarefa a seus maridos, preferindo, em vez disso, compartilhar o momento, mesmo que seja no meio da noite.

A cozinha se torna um espaço de cumplicidade silenciosa, onde os esbarrões de cotovelo e as palavras sobre a pesca criam uma conexão única entre o casal. As lembranças do primeiro encontro permeiam o ambiente, um rio profundo de sentimentos que ressurge na quietude da noite.

Em seus versos, Adélia Prado nos convida a mergulhar na essência de um casamento que transcende as expectativas tradicionais. A narradora se distancia daquelas que impõem tarefas domésticas a seus cônjuges, escolhendo, ao contrário, participar ativamente de um ritual aparentemente simples: a limpeza dos peixes pescados pelo marido.

Essa escolha revela uma busca por intimidade e conexão. A cozinha, no silêncio da noite, se transforma em um palco onde a cumplicidade se manifesta nos gestos cotidianos o roçar dos cotovelos, as palavras sobre a luta com o peixe, a descrição vívida de seus movimentos. Essas pequenas interações tecem uma tapeçaria de afeto, onde a memória do primeiro encontro flui silenciosamente, como um rio profundo que nutre a relação.

O ato final de preparar os peixes e se recolher para o descanso ganha uma dimensão poética. As "coisas prateadas" que "espocam" simbolizam a faísca do amor que se reacende, a constante renovação dos votos implícitos no convívio diário. A imagem de serem "noivo e noiva" sugere que, mesmo na rotina, o frescor do início do relacionamento permanece vivo, celebrando a beleza e a profundidade encontradas nas partilhas mais humildes da vida a dois.

© Alberto Araújo





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