Nos anais do ciclo arturiano, onde a bruma da lenda se adensa sobre os feitos de reis e cavaleiros, emerge a figura espectral da Senhora de Shalott. Tecida nos versos melancólicos de Alfred Tennyson, em duas evocações poéticas – a primeira em 1833, a derradeira e definitiva em 1842, sua história ressoa com a fatalidade dos amores proscritos e a beleza sombria da renúncia. Dizem que sua gênese repousa na figura de Elaine de Astolat, alma sofredora inscrita nas páginas de Le Morte d’Arthur pelo punho de Thomas Malory, talvez temperada pela amargura de uma antiga Donna di Scalotta italiana.
Em sua torre isolada, erguida como um cárcere de pedra à sombra de Camelot, vivia a Senhora sob o jugo de uma maldição, urdida pela pérfida Morgana. Seus olhos, cativos de uma interdição cruel, jamais poderiam contemplar diretamente a fulgurante cidade real, sob pena de morte. Seu universo se restringia ao pálido reflexo do mundo, aprisionado na superfície fria de um espelho. Ali, suas mãos pacientes e resignadas urdiam em uma tapeçaria as imagens fugazes que o espelho lhe concedia – sombras de uma realidade inatingível, fragmentos de um existir vedado. Sua alma, em sua contemplação solitária, era um anseio constante, uma sede lancinante pelo mundo tangível que lhe era negado.
Mas o destino, tecelão implacável de tragédias, urdiu um fio inesperado em sua monótona existência. O reflexo de Sir Lancelot, cavaleiro de fulgurante beleza e aura inatingível, trespassou a barreira do espelho e incendiou seu coração recluso. Um amor avassalador, sabidamente impossível, germinou em seu peito, ciente do laço que unia o cavaleiro à rainha Guinevere. A prisão de sombras tornou-se insuportável, a contemplação indireta, uma tortura. Em um gesto de desafio desesperado ao fado, em um abandono da segurança espectral, ela volveu o olhar para a janela, em direção à cintilante Camelot, selando, naquele instante fatídico, seu decreto de morte.
Consciente do crepúsculo iminente de sua vida, a Senhora de Shalott abandonou a torre que fora seu cárcere e seu santuário. Encontrou à margem do rio um esquife solitário, e na proa, com letras trêmulas, inscreveu seu nome, como um epitáfio antecipado. Entregou-se à correnteza, oferenda melancólica ao rio que a conduziria ao seu derradeiro destino. E enquanto a embarcação deslizava sobre as águas, um canto plangente, carregado da doçura da despedida e da amargura da renúncia, emanava de seus lábios. Era seu réquiem, sua derradeira oferenda ao mundo que ousara contemplar.
Camelot recebeu em silêncio fúnebre a chegada do barco espectral, trazendo consigo o corpo exânime da Senhora de Shalott. A corte, emudecida pela visão de sua beleza fria e pela aura trágica que a envolvia, curvou-se diante do mistério de sua jornada final. Até mesmo Lancelot, o objeto de seu amor proibido, contemplou seu rosto pálido com um misto de admiração e pesar, invocando sobre ela a clemência divina.
Assim, a Senhora de Shalott, envolta
em sua beleza melancólica e na impossibilidade de seu amor, ascendeu ao panteão
das figuras trágicas que povoam a arte. No século XIX, em particular, sua
história cativou a imaginação dos pintores, notadamente os da Irmandade
Pré-Rafaelita e seus sequazes, como John William Waterhouse. Suas telas,
imbuídas de uma atmosfera onírica e carregadas de simbolismo, exploram a
delicada fronteira entre a pureza e o desejo, a frustração e a morte,
transmutando sua paixão inatingível em um erotismo espiritualizado que, até
hoje, suscita interpretações diversas e perpetua o fascínio por essa alma
aprisionada pela maldição e libertada pela morte.
© Alberto Araújo
SOBRE A IMAGEM
A pintura é John William Waterhouse datada de 1894, com dimensões de 142,2 x 86,3 cm, e está localizada na Leeds City Art Gallery. Waterhouse pintou diferentes versões da Senhora de Shalott ao longo de sua carreira, explorando diversos momentos da narrativa do poema de Tennyson. Localização da pintura da imagem: Leeds City Art Gallery
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