terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

CHARLES DE GAULLE UMA BIOGRAFIA DE JULIAN JACKSON. TRADUÇÃO: BERILO VARGAS.

 



 

Um retrato vibrante do líder controverso, mas incontestável que comandou a resistência à ocupação nazista e salvou a honra da França. Charles de Gaulle ganha aqui sua primeira reconsideração histórica de peso em vinte anos, escrita por um dos maiores especialistas na história moderna da França.

 

Com sua personalidade forte, o general Charles de Gaulle adentrou a história inspirando homens e mulheres a arriscarem a vida para combater o nazismo. Depois, como presidente, enfrentou revoltas nacionais e violentos movimentos de independência. Perseguindo o que chamou de "uma certa ideia da França", desafiou a hegemonia americana, retirou a França da Otan e por duas vezes vetou a entrada da Grã-Bretanha na Comunidade Europeia. Figura gigante, cujo legado segue sendo profundamente disputado, De Gaulle ressurge em cores vivas nessa premiada biografia.

 

Apoiando-se em vasta pesquisa, inclusive de arquivos recém-disponibilizados, o historiador Julian Jackson explora todas as dimensões do "mistério De Gaulle", sem buscar lhe dar excessiva coerência: revela as raízes conservadoras da formação intelectual do general, descreve com precisão e leveza seus paradoxos e ambiguidades, seu talento político, paixão pela tática, pragmatismo e capacidade de visão, e lança nova luz sobre a relação do estadista com Churchill. Uma narrativa pulsante, que capta De Gaulle como nunca antes.

 

Vencedor do Duff Cooper Prize for History 2018 e do Elizabeth Longford Prize for Historical Biography 2019.

 

"A biografia escrita por Julian Jackson é um monumento à altura dessa figura extraordinária (...), um dos personagens mais fascinantes da política do século XX. (...) O resultado é uma excelente história da França moderna disfarçada de biografia de um estadista." -- The New York Review of Books

 

"Uma apresentação arrebatadora e ao mesmo tempo concisa do mais brilhante, exasperador e inefavelmente francês dos homens." -- The New York Times

"Deixa as obras anteriores na sombra, em boa parte devido à pesquisa impecável e à sua rara capacidade de ser objetivo e atraente. (...) Uma obra-prima." -- The Spectator

 

 

DE GAULLE ESTÁ EM TODA PARTE

 

Na França, hoje, Charles de Gaulle está em toda parte: em lembranças, em

nomes de ruas, em monumentos, em livrarias. No cômputo mais recente,

mais de 3600 localidades tinham um espaço público – rua, avenida, praça,

rotatória – batizado em sua homenagem. Isso põe De Gaulle à frente de Pasteur, que ocupa o segundo lugar (300), e de Victor Hugo, o terceiro (2258).1

O espaço mais grandioso de Paris, onde fica o Arco do Triunfo de Napoleão,

foi rebatizado como place de l’Etoile-Charles de Gaulle imediatamente após a

morte do general. Saindo dali a pé pela Champs-Elysées logo se chega a uma

estátua de De Gaulle andando resolutamente na mesma direção. Dobrando

então à direita, atravessa-se o Sena para o Hôtel des Invalides, o museu do

Exército da França, que abriga um museu à parte dedicado exclusivamente a

De Gaulle. Entrar nesse Historial Charles de Gaulle é como cruzar a soleira

de um espaço sagrado gaullista.

 

Quando uma pesquisa de opinião em 200 pediu que os franceses classificassem as figuras mais importantes de sua história, 44% puseram De Gaulle no topo (acumulando 70% das escolhas), bem à frente de Napoleão, que ficou em segundo lugar com 4% (38%).2 Todos os políticos, de esquerda ou de direita, invocam o nome de De Gaulle. Nas eleições presidenciais de 202, ele foi citado como exemplo tanto pelo socialista François Hollande como por seu adversário de direita Nicolas Sarkozy (supostamente gaullista) – e por praticamente todos os demais. Até mesmo o Front National, de extrema

direita, cujo fundador Jean-Marie Le Pen foi um visceral antigaullista, agora

exalta o legado de De Gaulle. Mas nenhum outro político francês contemporâneo buscou inspiração em De Gaulle de maneira mais consciente do que Emmanuel Macron, que em sua fotografia oficial como presidente aparece Charles de Gaulle diante de uma mesa com um livro aberto em cima: a edição da Pléiade das Memórias de guerra de De Gaulle.

 

De Gaulle aos poucos se livra das amarras da história da qual foi protagonista. Livros recentes incluem uma divertida sátira sobre um encontro na Irlanda entre ele e Jean-Paul Sartre (os dois nunca se encontraram); uma fábula em que se imagina De Gaulle voltando do mundo dos mortos para salvar a tradicional maionese francesa e defender os direitos dos gays; uma tirinha de humor sobre ele na praia; um “Dicionário de um amante de De Gaulle”, cujo autor visita lugares gaullistas como se refizesse os passos de um santo. Ninguém poderia prever essa extraordinária unanimidade na França quando De Gaulle deixou o poder, em 1969. Ela obscurece o fato de que, ao longo de sua carreira, ele foi uma figura brutalmente desagregadora. Durante seus trinta anos de vida política, De Gaulle foi o personagem mais reverenciado da história francesa moderna – e o mais odiado. Em igual medida, foi vilipendiado e idealizado, desprezado e adorado. Outros políticos franceses do século XX foram odiados, mas não com tamanha intensidade. Para alguns, odiá-lo dava sentido à vida; outros ficavam loucos de fúria. Esta foi a sina do político conservador Henri de Kérillis, que começou como seguidor entusiástico de De Gaulle, rompeu com ele em 1942 e passou seus anos de declínio nos Estados Unidos, uma figura arruinada e patética, convencido de que agentes gaullistas o espreitavam em cada esquina, prontos para atacá-lo. O estranho caráter da patologia antigaullista fica evidente já nos títulos de livros publicados de 1964 a 1970 por um ex-membro da Resistência gaullista, André Figueras, que depois se voltou contra o antigo herói: Charles le dérisoire (Charles, o irrisório), Le Géneral mourra (O general vai morrer), Les Gaullistes vont en enfer (Os gaullistas vão para o inferno), De Gaulle impuissant (De Gaulle, o impotente). Há muito mais nessa veia no catálogo de Figueras. Quando De Gaulle renunciou, em 1969, um jornal de extrema direita publicou a seguinte

manchete: “A fera está morta, mas o veneno ainda vive.” O ódio ia além das palavras. De Gaulle foi alvo de cerca de trinta sérias tentativas de assassinato, duas das quais – em setembro de 1960 e agosto de 1962 – quase foram bem-sucedidas. Para alguns antigaullistas, a fixação em De Gaulle incorporava-se de tal maneira à personalidade que os motivos originais para desejar matá-lo eram eclipsados pelo ódio que ele inspirava. Isso ocorreu, por exemplo, com André Rossfelder, que planejou a última tentativa  séria de assassiná-lo, em 1964. Como muitos fanáticos antigaullistas, ele o odiava por ter aceitado a independência argelina em 1962. Mas, mesmo depois de perdida essa batalha, Rossfelder continuou conspirando para eliminar De Gaulle. Quando lhe perguntaram por quê, ele respondeu: “Porque ele ainda está aí; simplesmente para que eu não tenha mais que pensar no tirano.”4 No outro extremo estavam aqueles cuja reverência por De Gaulle se situava entre a lealdade a um senhor feudal e a fé num líder religioso. Sobre o romancista André Malraux, um gaullista escreveu: “Como todos nós, ele entrou no projeto gaullista como se entra numa religião" Se a vida dos franceses esteve tão apaixonadamente enredada em suas relações com De Gaulle, isso aconteceu porque ele foi o principal ator em duas guerras civis no país no século XX. A primeira delas resultou da derrota da França para a Alemanha em 1940, quando o governo do marechal Pétain assinou um armistício com Hitler. Recusando-se a aceitar tal decisão, De Gaulle partiu para Londres a fim de continuar a batalha. Esse ato de desafio fez dele um rebelde contra o governo legal chefiado pela figura mais reverenciada da França: os primeiros tiros disparados pelos soldados que apoiaram De Gaulle tiveram como alvo outros soldados franceses, não os alemães. Nos quatro anos seguintes, De Gaulle afirmava de Londres que ele, e não Pétain, representava a “verdadeira” França. Ele retornou ao país em 1944, aclamado como herói nacional, e chefiou um governo provisório até renunciar ao poder em janeiro de 1946.

 

Outro conflito explodiu em novembro de 1954, quando nacionalistas argelinos lançaram sua campanha para se tornarem independentes da França. A Guerra da Argélia, que durou oito anos, levou De Gaulle de volta ao poder em 1958 e culminou na independência argelina quatro anos depois. Embora Tenha sido manifestamente uma guerra de descolonização, o conflito teve as características de uma guerra civil. Em termos administrativos, a Argélia era parte da França, sendo “francesa” desde 1830, por mais tempo do que a cidade de Nice (francesa desde 1860). Os que desejavam reter a região africana gabavam-se de que o Mediterrâneo atravessava a França como o Sena atravessava Paris. Muitos dos europeus da Argélia, que somavam mais de 1 milhão de pessoas, viviam no local havia gerações. A Argélia era genuinamente a sua casa, e para eles sua perda foi ainda mais traumática do que a derrota da França para a Alemanha em 1940.

 

Além do papel central que desempenhou nesses dois conflitos, De Gaulle

contestava a forma tradicional de os franceses pensarem sua história e sua

política. Após retornar ao poder em 1958, ele transformou radicalmente as

instituições políticas da França, rompendo com palavras de ordem da tradição

republicana herdada da Revolução de 1789. Sua visão do lugar da França no

mundo, encapsulada no esquivo conceito de “grandeza”, era admirada por

alguns e vista por outros como pose nacionalista. Por fim, em maio de 1968,

no crepúsculo de sua carreira, De Gaulle foi alvo da mais espetacular agitação

revolucionária da história francesa do século XX.

 

Alguns dos que o reverenciaram entre 1940 e 1944 se opuseram a ele na

questão da Argélia; outros se opuseram nos dois conflitos; outros, ainda, o

apoiaram em ambos; e, por fim, houve os que a ele se opuseram entre 1940 e

944 e apoiaram sua volta ao poder em 1958, antes de novamente se voltarem contra ele. O antiamericanismo de sua política externa de grandeza atraía gente de esquerda que ao mesmo tempo se opunha ao seu estilo autoritário de governar. Há certa verdade no dito espirituoso de De Gaulle segundo o qual “todo mundo é, foi ou será ‘gaullista’”. Mas também há verdade no comentário de um observador na véspera da eleição presidencial de 1965: “À exceção dos ultrafiéis, todo mundo foi, é ou será antigaullista. O pior é que todos somos gaullistas e antigaullistas ao mesmo tempo, e que a divisão atravessa a consciência de cada um de nós.”

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário