segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O MESTRE DO REALISMO BRASILEIRO MACHADO DE ASSIS EM O SEGREDO DO BONZO






O MESTRE DO REALISMO BRASILEIRO MACHADO DE ASSIS EM O SEGREDO DO BONZO É um conto escrito pelo autor realista Machado de Assis, originalmente publicado na Gazeta de Notícias no ano de 1882 e, posteriormente integrado ao livro Papéis Avulsos.

 

O SEGREDO DO BONZO

 

Nessa obra a voz textual pertence a Fernão Mendes Pinto, aventureiro e explorador português do século XVI, que relata uma experiência que vivenciou quando esteve no reino de Bungo. Bem como adverte o subtítulo do conto, trata-se de um capítulo inédito das anotações do viajante. Semelhante recurso permitiu a Machado tornar a narração sincera, como ele mesmo afirma em suas notas, com a atribuição de seu texto aos escritos de Mendes Pinto. Aqui se observa uma crítica irônica à maneira como as massas são facilmente manipuladas por oradores medíocres e prepotentes em uma sociedade alienante.

 

ANÁLISE DA TRAMA

 

Após fazer uma breve referência a um suposto capítulo anterior, o narrador – Fernão Mendes Pinto – anuncia que discorrerá sobre certa doutrina que merece ser divulgada em razão dos benefícios desta para a alma. Contextualiza a situação que se segue: no ano de 1552, em um passeio com Diogo Meireles na cidade de Fuchéu no reino de Bungo. Ao caminharem pelas suas ruas, os dois se deparam com um grande aglomerado de cidadãos perplexos que se reuniram em torno de um homem chamado Patimau que, gesticulando veemente, defendia com eloquência a origem dos grilos por meio de um postulado “abiogênico”, segundo o qual teriam surgido do ar e das folhas de coqueiro sob a luz da lua nova. Patimau concluía seu pensamento expondo que somente alguém com sua formação acadêmica poderia, com um estudo detalhado, realizar esse descobrimento cuja glória pertence à cidade de Fuchéu. Desse modo, a personagem exerce o papel de um mito que inibe o pensamento dos outros com o conforto de uma verdade revelada (além de se aproveitar de títulos, se identificando como filósofo, físico e matemático). O povo em seguida ovaciona Patimau carregando-o aos cumprimentos e lhe servindo de regalias. Ao continuarem caminhando, Mendes Pinto relata que se encontraram com uma outra cena muito semelhante na qual outro orador (Languru) defendia outra teoria absurda para uma multidão de pessoas ingênuas que o saudava. Confusos com a repetição exata da mesma cena e com a falta de procedência racional das ideias levantadas, Fernão e Diogo Meireles, este entendedor da língua nativa, continuam o caminhar até se encontrarem com Titané, um amigo de Diogo que os recebeu com alvoroço e que lhes explicou algo sobre a doutrina que vem sendo seguida por alguns homens da cidade que ouviram os ensinamentos a um certo bonzo (uma espécie de sacerdote).

No dia seguinte foram levados por Titané até o propalado homem: um senhor entendedor das letras que atendia pelo nome de Pomada. Quando os viajantes demonstraram interesse pela dita doutrina, o mestre começou a lhes contar que desde jovem sempre se martirizou em busca de ampliar o seu conhecimento, cercando-se de livros e desenvolvendo ideias. No entanto, tal esforço nunca era reconhecido, ao passo que o produto final sim. De acordo com o bonzo, de nada valeriam aqueles longos anos de estudo se não fosse pela existência dos outros para o honrarem. Um homem pode se tornar detentor dos mais profundos saberes, mas, se não houver contato deste com outros homens, é como se os saberes não existissem. Nas palavras do autor, “não há espetáculo sem espectador”. Logo quando chegou a isso, conta o bonzo que imaginou uma maneira fácil de se conseguir o prestígio sem a necessidade de perder longos anos com o trabalho, uma vez que só os fins são interessantes e jamais os meios. Nota-se aqui a crítica de Machado à mediocridade e ao desejo de poder de alguns intelectuais que se valem da hierarquia social, propalando um conhecimento que não possuem, unicamente visando à admiração alheia e aos bons tratos. O bonzo Pomada concluiu que “a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam”. Surge aqui a distância entre realidade e opinião: conquanto algo possa existir realmente, jamais existirá de fato se não houver opiniões que acreditem em sua existência, ou seja, não há objeto se não houver o sujeito que o conhece. Ao contrário, porém, se algo não existir na realidade, mas sim na opinião das pessoas, esse algo cumpre com a única maneira de existência necessária. Eis então a importância dada ao parecer acima do ser. Enfim, o bonzo explica que embora as teorias de Patimau e Languru carecessem de sentido, ambos conseguiram conquistar os ânimos da multidão com a aplicação dessa arte e agora desfrutam dos prazeres provindos do reconhecimento.

Os três deixaram a casa do mestre Pomada com o título de pomadistas (Machado de Assis explica em suas notas que essas são expressões populares de sua terra que significam “charlatão” e “charlatanismo”). A seguir, os três se empenharam em aplicar a doutrina em seu rigor: Titané, que era alparqueiro, tratou de divulgar pela cidade que suas alparcas eram demasiadamente cobiçadas no exterior e que isso elevava a honra da cidade, passando a ser reverenciado pela opinião pública e procurado para encomendas frequentes. Narra Mendes Pinto que se constituiu como um brilhante músico somente com a prepotência dos gestos e da maneira como organizava seus concertos pela cidade, provocando uma ilusão coletiva no povo. O sistema assim era desenvolvido plenamente, considerando-se que Fernão era bom músico na esfera da opinião sem sê-lo na realidade, dispondo do exato mesmo prestígio de alguém que o fosse. O desfecho do conto, porém, traz o apogeu do método do bonzo Pomada executado por Diogo Meireles. É apresentado que os cidadãos de Fuchéu vêm sofrendo de uma espécie de doença que torna o nariz do paciente inchado e horrendo e que para se livrar da moléstia basta que se ampute os narizes. Entretanto os doentes preferiam manter seus narizes à lacuna facial. Sendo Diogo um médico da cidade, convocou uma assembleia com pessoas de alto status do reino de Bungo para anunciar sua teoria que consistia na distribuição de um “nariz metafísico” a cada doente que tivesse seu nariz retirado. Bem como a própria metafísica, a existência do nariz se dava no domínio supra-sensível, ou seja, a presença do nariz não poderia ser identificada pelos sentidos (não poderia ser visto ou tocado), mas unicamente pelo entendimento abstrato das pessoas. Um filósofo na plateia, inclusive, evitando ser ofuscado pela genialidade do médico, enaltece sua teoria afirmando que a natureza do nariz é compartilhada pelo homem:

“(...) visto não ser o homem todo outra cousa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verosimilhança, um nariz metafísico (...)”.

O narrador observa que Diogo Meireles cumpre com exímia maestria os postulados de Pomada. A partir deste dia, inúmeros pacientes buscaram pelo doutor para a operação e substituição do nariz doente pelo “metafísico” com satisfação. Pouco importa se não existissem na realidade, desde que uma ideia respaldada em uma conjectura complexa afirmasse sua existência definitiva. Está comprovada a eficácia do segredo do bonzo que sobrepõe o valor da opinião à realidade. Consuma-se, enfim, a crítica machadiana aos valores deturpados que movem uma sociedade de alienados voltados para si mesmos.

 

O CONTO O SEGREDO DO BONZO

 

O SEGREDO DO BONZO CAPÍTULO INÉDITO DE FERNÃO MENDES PINTO

 

Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o Padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade. Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões somente, e todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que em resumo, era o seguinte: — Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova; que este descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fuchéu, cujo filho era; e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites. A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem bradando: “Patimau, Patimau, viva Patimau, que descobriu a origem dos grilos!” E todos se foram com ele ao alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverências, à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e cortesão. Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo Meireles e eu, falando do singular achado da origem dos grilos, quando, a pouca distância daquele alpendre, obra de seis credos, não mais, achamos outra multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficamos espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles, visto que também este falava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da oração. 

E dizia este outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento que ele podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar glória ao reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem. O povo, que escutara esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem ao dito alpendre, com a diferença que o trepou a uma charola; ali chegando, foi regalado com obséquios iguais aos que faziam a Patimau, não havendo nenhuma distinção entre eles, nem outra competência nos banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados. Ficamos sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual a semelhança exata dos dois encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau, ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o outro. Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles, tais como — ouro da verdade e sol do pensamento, — contou-lhe este o que víramos e ouvíramos pouco antes. 

Ao que Titané acudiu com grande alvoroço: — Pode ser que eles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito saber, morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos cobiçosos de ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no dia seguinte às casas do bonzo, e acrescentou: — Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão às que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a praticá-la à nossa vontade. No dia seguinte, ao modo concertado, fomos às casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e oito anos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquela gentilidade, e por isso mesmo mal visto de outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem éramos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro com várias cerimônias e bugiarias necessárias à recepção da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para confiá-la e explicá-la. — Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora. 

Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu nada perdesse. E continuou dizendo: — Mal podeis adivinhar o que me deu idéia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles. Não sabíamos em que maneira déssemos ao bonzo as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Ele interrogou-nos ainda algum tempo, compridamente, acerca da doutrina e dos fundamentos dela, e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos; enfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali com a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome dele, lhe era em extremo agradável. Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos os três combinado em pôr por obra uma ideia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu, uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios que desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiência ambas as moedas, isto é, vendendo também as suas alparcas: ao que nos não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina. Consistiu a experiência de Titané em uma coisa que não sei como diga para que a entendam. Usam neste reino de Bungo, e em outros destas remotas partes, um papel feito de casca de canela moída e goma, obra mui prima, que eles talham depois em pedaços de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com vivas e variadas cores, e pela língua do país, as notícias da semana, políticas, religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas, balões e toda a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há frequente, ou de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas são feitas de oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da terra, a troco de uma espórtula, que cada um dá de bom grado para ter as notícias primeiro que os demais moradores. 

Ora, o nosso Titané não quis melhor esquina que este papel, chamado pela nossa língua Vida e claridade das coisas mundanas e celestes, título expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar notícias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme as quais não havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas dele Titané; que estas alparcas eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e graciosas; que nada menos de vinte e dois mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse criado o título honorífico de “alparca do Estado”, para recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que eram grossíssimas as encomendas feitas de todas as partes, às quais ele Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela glória que dali provinha à nação; não recuando, todavia, do propósito em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cinqüenta corjas das ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rei e o repetia agora; enfim, que apesar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra, ele sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo da glória do reino de Bungo. A leitura desta notícia comoveu naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se falando em outra coisa durante toda aquela semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não deixou ele de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e extraordinárias anedotas acerca da sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça: — Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo. — Não me parece, atalhei, que tenhais cumprido a doutrina em seu rigor e substância, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela. Dito isto, assentaram os dois que era a minha vez de tentar a experiência, o que imediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar a narração da experiência de Diogo Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor prova desta deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de música e charamela, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os principais de Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido coisa tão extraordinária. E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos ademanes, da graça em arquear os braços para tomar a charamela, que me foi trazida em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os olhos ao ar, e do desdém e ufania com que os baixei à mesma assembléia, a qual neste ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que quase me persuadiu do meu merecimento. Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de Diogo Meireles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os físicos da terra propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria dos enfermos, nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à lacuna, e tendo por mais aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele órgão. Neste apertado lance mais de um recorria à morte voluntária, como um remédio, e a tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrifício. 

Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da assembleia foi imenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo. A assembleia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para glória do bonzo e benefício do mundo.












Um comentário:

  1. Parabéns pela matéria!(Angeli Rose - AJEB/RJ)👏🏽👏🏽👍🏼🙋🏽‍♀️

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