DESTAQUE DO FOCUS PORTAL CULTURAL: "VELHICE" TEXTO DE RAQUEL NAVEIRA. EM TEMPO A IMINENTE ESCRITORA FOI HOMENAGEADA POR ESTA REVISTA CULTURAL. CLICAR NO LINK: https://youtu.be/TQyBBvQqPtc
VELHICE
Raquel Naveira
Sinto-me
estranha e diferente. Meu corpo mudou ao ponto de me assentarem bem os vestidos
frouxos. A tinta preta nos meus cabelos esconde uma brancura externa, enquanto
a neve se espalha por dentro de mim. Precisaria de mais vitalidade, de mais
esperança no futuro. Meus olhos estão baços de ausências. A cidade onde nasci
coalhou-se de fantasmas que me veem caminhando nas ruas. Acenam-me das janelas
de antigas casas que foram demolidas.
Recorro
ao filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), nas páginas da Arte Retórica, no capítulo em que vai
enumerando as características mais comuns dos velhos: a constatação de que
sofremos desenganos, cometemos faltas, de que os negócios humanos são, quase
sempre, mal sucedidos; a cautela e a desconfiança a cada passo; o não ter
certeza de nada e utilizar sempre a palavra “talvez”; o não desejar coisa
grande ou extraordinária, mas, unicamente, o bastante para viver; a timidez , o
resfriamento do ardor; o apego à vida, porque o desejo incide naquilo que nos
falta e o que nos falta é o que mais desejamos; uma inclinação ao cinismo e à
impaciência; o recordar o passado, recordar, recordar...
Que
sabedoria a do velho discípulo de Platão. Criou o sistema da Lógica, da razão.
Reconheço em mim alguns desses pontos. Vagarosa em minhas afeições, amo cada
vez mais como se fosse oneroso pagar um preço tão alto por tanto amor incompreendido.
Não
pensem que esta é uma lamúria. Tomar consciência de minha finitude e de minhas
fraquezas é um dever da existência. Existo hoje nessa mulher de ossos saltados
e pele com pequenas manchas marrons.
Só
Hilda Hilst, que celebrava os riscos da poesia como uma espécie de religião
assombrada, mergulhou com lucidez na problemática da velhice. Escreveu A Obscena Senhora D, uma novela de luto
com doses de dramaturgia, numa prosa densa, lírica e radical. Aos sessenta
anos, após a morte do marido, escondida num vão de escada, a Senhora D percebeu
que estava absolutamente sozinha e desabafa: “...queria te falar desses nadas
do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do
desaparecimento, dessa coisa que não existe, mas é crua, é viva, o Tempo.”
Também
ficou impregnada em mim a leitura do romance O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway (1899-1961). Atenção! O Velho e o Mar e não O Idoso e o Mar, O Homem na Terceira Idade e o
Mar, esses títulos seriam ridículos. Encaremos a realidade. Santiago é o
velho pescador de um vilarejo cubano. Ele sabe que deve remar até as
profundezas do golfo, a fim de travar sua derradeira batalha, apenas com o céu
e o mar por testemunha. Fisga um enorme peixe, maior que seu barco. Testa seus
limites num embate feroz. Cheiro de alcatrão, de sangue, de náusea e de peixe
se misturam. Lança o arpão no corpo do peixe que se dilata em espasmos. Que
duro conflito! A capacidade do espírito humano para enfrentar e vencer
dificuldades. Afinal, “um homem pode ser destruído, mas não derrotado.”
Tenho
um pouco da melancolia e do enfado da Senhora D e a vontade de lutar até o fim,
como o velho pescador singrando pelas ondulações do mar. Desejo de ainda dar
frutos e flores, como uma árvore desfolhada no outono. Apesar do meu desgaste,
há uma luz que me renova os galhos. Uma firmeza em minhas raízes que suportam
tempestades. Como se eu tivesse sido plantada com segurança num mundo inseguro.
Recuso-me
a partir assim. As horas são difíceis, há sofrimentos que asfixiam por todo
lado. Mas ainda me restam forças, apetite...e a noite está linda.
CRÔNICA
A SER PUBLICADA PELA REVISTA CONHECE-TE,
DO EDITOR MARCELO PEREIRA RODRIGUES. VISITE O SITE www.revistaconhecete.com.br
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