quarta-feira, 17 de setembro de 2025

AO AMANHECER, UM ENVELOPE - CRÔNICA DE ALBERTO ARAÚJO - A BENEDITO VASCONCELOS MENDES

A CRÔNICA QUE SEGUE FALA DE UM SERTÃO QUE MORA DENTRO DE MIM, um sertão de cheiros, sons e memórias que atravessam o tempo. Benedito Vasconcelos Mendes soube captá-lo com a delicadeza de quem viveu cada cena e a força de quem sabe narrar o que é eterno. É um convite para abrir as páginas e deixar que o sertão amanheça também dentro de você.

AO AMANHECER, UM ENVELOPE

Crônica de Alberto Araújo

Quando o sertão bate à porta e se instala no coração 

Há dias que começam comuns e terminam inesquecíveis. O sol ainda não havia rompido totalmente o horizonte quando ouvi a campainha. O som, seco e breve, cortou o silêncio da manhã. Ao abrir a porta, encontrei o síndico, com um envelope pardo nas mãos, desses que carregam segredos ou notícias que mudam o rumo da manhã. Havia algo no peso e no cuidado com que ele segurava o pacote que me fez perceber: ali dentro havia mais que papel, havia história. Assinei o recebimento sem imaginar que ali dentro repousava um pedaço vivo do sertão, não o sertão seco das manchetes apressadas, mas o sertão pulsante, humano, tecido de memórias e suor. O café recém-passado espalhava seu aroma pela cozinha, mas, antes mesmo de me sentar, rompi o lacre. E então, como quem abre uma janela para outro tempo, dei de cara com “Crônicas Sertanejas”, de Benedito Vasconcelos Mendes. 

A capa, assinada por Augusto Paiva, não era apenas bonita, era um convite. Um chamado silencioso para atravessar as páginas e entrar num sertão que não se limita à geografia, mas se estende pela memória, pela cultura e pela alma de um povo. As xilogravuras de Neusa Bernardo Coelho, com seus traços firmes e poéticos, já anunciavam que cada capítulo seria um mergulho profundo. 

O livro, com suas 176 páginas, vinha acompanhado de nomes que, por si só, já são um selo de respeito e reconhecimento: apresentação de Lívio Oliveira, prefácio de Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, orelhas de Susana Goretti Lima Leite de Braga Portugal. Mas o que realmente me prendeu foi o conteúdo: vinte e seis crônicas que, mais do que narrar, devolvem ao leitor a textura da vida nordestina. 

Ali estão o banho de rio na Fazenda Aracati, as lavadeiras do Rio Acaraú, o cheiro do café torrado e pilado à mão, as parteiras que, com mãos firmes e coração sereno, traziam ao mundo não apenas crianças, mas esperança. Estão também os guardas noturnos, a devoção a Santa Luzia de Mossoró, os vaqueiros catingueiros com sua essência indomável. Cada texto é um retrato vivo, pintado com palavras que carregam o pó da estrada e o frescor da sombra de um juazeiro. 

Benedito não escreve como quem observa de fora. Ele escreve como quem viveu e vive o sertão. Sua biografia é, por si só, uma crônica de dedicação: professor, pesquisador, fundador do Museu do Sertão, presidente de instituições culturais, inovador na pesquisa agropecuária nordestina. Um homem que ousou domesticar emas, introduzir espécies adaptadas de desertos, criar centros de multiplicação de animais silvestres. Um cientista com alma de contador de histórias. 

Enquanto folheava o livro, percebi que aquele presente não era apenas um gesto de amizade ou apreço. Era um chamado. Um lembrete de que informação não é só dado frio, é memória, é identidade, é resistência. Num mundo apressado, onde as notícias se dissolvem em segundos e as histórias se perdem no ruído, receber um livro assim ao amanhecer é como ouvir um aboio distante: um convite para parar, respirar e lembrar-se de onde viemos. 

Ler Crônicas Sertanejas é mais que um ato literário; é um reencontro. É sentir o cheiro da terra molhada depois da chuva, ouvir o estalar da lenha no fogão, ver o brilho nos olhos de quem conta um “causo” pela centésima vez como se fosse a primeira. É compreender que o sertão não é apenas um lugar, é um estado de espírito, uma forma de ver e viver o mundo. 

Fechei o volume com cuidado, como quem guarda um tesouro. Lá fora, o dia já estava claro, o trânsito começava a roncar, a cidade retomava seu ritmo. Mas dentro de mim, o sertão inteiro amanhecia. E percebi que, de alguma forma, aquele envelope pardo havia me devolvido algo que o tempo e a pressa tentam roubar: a capacidade de se encantar. 

Porque, no fim, é disso que se trata, de manter viva a chama das histórias que nos formam. E, naquela manhã, Benedito Vasconcelos Mendes me lembrou de que o sertão, com toda a sua força e beleza, cabe inteiro dentro de um livro. E que, quando abrimos suas páginas, ele cabe também dentro de nós.

 

© Alberto Araújo

 

BENEDITO VASCONCELOS MENDES

Guardião da memória sertaneja e semeador de saberes, Benedito Vasconcelos Mendes é professor, escritor e pesquisador que fez da ciência e da cultura dois rios que correm juntos. Presidente-fundador do Museu do Sertão, é também sócio efetivo da Academia Mossoroense de Letras (AMOL), vice-presidente do Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP) e sócio correspondente da Academia Cearense de Letras (ACL) e do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará. 

Nascido em Sobral (CE), fincou raízes profissionais e afetivas em Mossoró (RN), onde construiu uma trajetória marcada pelo diálogo entre o conhecimento acadêmico e a tradição popular. Graduou-se em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal do Ceará (1969), fez mestrado em Microbiologia Agrícola na Universidade Federal de Viçosa (1975) e doutorado em Agronomia (Fitopatologia) na Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – USP (1980).

Foi professor titular e diretor da antiga Escola Superior de Agricultura de Mossoró (ESAM), hoje Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), entre 1970 e 1994. É um dos fundadores do Curso de Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), onde atua como professor adjunto IV, formando novas gerações com o mesmo zelo com que um agricultor cuida de sua lavoura.

Na gestão e na pesquisa, ocupou posições de destaque: presidiu a Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte (EMPARN), chefiou a EMBRAPA Meio-Norte (Teresina-PI), presidiu a Fundação de Pesquisa Guimarães Duque e, atualmente, é Superintendente Federal de Agricultura no Estado do Rio Grande do Norte. 

Visionário, na década de 1980 inovou a pesquisa agropecuária nordestina ao introduzir, para estudos de adaptação, plantas e animais de regiões desérticas — como o elande, o órix chifre-de-cimitarra e o ovino caracul — e foi pioneiro no Brasil na criação de emas com finalidades sociais, econômicas e ecológicas. Na ESAM, criou o CEMAS (Centro de Multiplicação de Animais Silvestres), onde iniciou trabalhos de domesticação de espécies como ema, caititu, tejo, preá, mocó, cutia e capivara, unindo ciência e preservação. 

Autor de obras fundamentais sobre o desenvolvimento regional, entre elas Alternativas Tecnológicas para a Agropecuária do Semi-Árido (Ed. Nobel, São Paulo), Plantas e Animais para o Nordeste (Ed. Globo, Rio de Janeiro) e Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido (SEMACE, Fortaleza), Benedito alia o rigor científico à poesia da vida sertaneja. Sua escrita e sua atuação são pontes entre o passado e o futuro, entre a memória e a inovação, fazendo dele uma referência nacional na defesa e preservação da cultura e da biodiversidade do semiárido brasileiro. 

© Alberto Araújo 







 

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