segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O SILÊNCIO DAS ENTRELINHAS - PROSA POÉTICA DE ALBERTO ARAÚJO

Clarice escrevia como quem encosta o ouvido no coração do mundo. Não buscava grandes acontecimentos, não se deixava seduzir pelo espetáculo da vida em sua superfície. Preferia o detalhe mínimo, a fresta de luz que se derrama sobre a mesa, o silêncio que se instala entre duas palavras, o instante em que o olhar se perde e, sem querer, encontra o infinito. Sua literatura não gritava: sussurrava. E nesse sussurro havia uma força capaz de desmontar certezas, de desarmar o leitor diante do mistério que é simplesmente existir. 

Ela sabia que viver é sempre um risco: o risco de sentir demais, de não caber em si mesma, de se perder no próprio labirinto interior. Mas também sabia que é nesse risco que mora a beleza. Clarice transformava o banal em revelação, como se cada gesto cotidiano fosse uma porta secreta para o indizível. Uma xícara de café, um cachorro dormindo ao sol, uma criança que pergunta algo simples demais, tudo isso, em suas mãos, se tornava matéria de eternidade.

Sua escrita parecia nascer de um lugar anterior às palavras, como se fosse preciso atravessar o silêncio para que a frase pudesse existir. Não era apenas literatura: era uma tentativa de tocar o indomável, de traduzir o que não se deixa traduzir. Ler Clarice é aceitar que a vida não precisa ser explicada — basta ser sentida. E, no fundo, talvez seja isso que ela nos ensina: que a palavra não aprisiona o mistério, apenas o acaricia, como quem passa a mão sobre a superfície de um lago sem jamais alcançar sua profundidade. 

Clarice não escrevia para agradar, mas para revelar. Revelar o que há de mais íntimo e, ao mesmo tempo, de mais universal. Sua obra é um convite à vulnerabilidade: ao aceitar que somos frágeis, contraditórios, incompletos, descobrimos também a grandeza de sermos humanos. Ela não tinha medo de expor a ferida, porque sabia que é na ferida que a vida pulsa mais forte. 

E havia nela uma coragem rara: a de olhar para dentro sem desviar os olhos. Muitos de nós preferimos a distração, o barulho, a pressa. Clarice, ao contrário, mergulhava no silêncio, como quem sabe que é ali que mora a verdade. Não uma verdade absoluta, mas uma verdade íntima, feita de lampejos, de intuições, de pequenas epifanias que surgem quando menos se espera.

Talvez por isso sua escrita seja tão difícil de definir. Não é romance, não é conto, não é ensaio,  é tudo isso e mais. É fluxo, é respiração, é pensamento em estado bruto. É como se Clarice tivesse encontrado uma forma de escrever o instante antes que ele se dissolvesse. E, ao fazê-lo, nos lembrava de que a vida é feita de instantes, e que cada um deles pode conter o universo inteiro. 

Há quem diga que sua literatura é hermética, difícil, quase inacessível. Mas, na verdade, ela é simples,  simples como o gesto de respirar, como o ato de existir. O que a torna complexa é justamente essa simplicidade radical, essa recusa em se afastar do essencial. Clarice não enfeitava: desnudava. Não construía castelos de palavras: derrubava muros para que o leitor pudesse ver o que sempre esteve ali, mas que raramente ousamos encarar.

E, no entanto, sua escrita não é sombria. Há nela uma luz estranha, uma claridade que não vem do sol, mas de dentro. É a luz da consciência, da percepção aguda, da sensibilidade que transforma até a dor em revelação. Ler Clarice é como acender uma vela em um quarto escuro: de repente, tudo ganha contorno, mas também sombras novas, que antes não víamos. 

No fundo, Clarice nos lembra que viver é um exercício de atenção. Atenção ao que é pequeno, ao que é invisível, ao que parece insignificante. Porque é justamente aí que a vida se revela em sua plenitude. O silêncio entre duas frases pode dizer mais do que um discurso inteiro. O olhar de um animal pode conter mais verdade do que mil teorias. O instante em que respiramos fundo pode ser, por si só, uma experiência de eternidade. 

E talvez seja essa a grande lição de sua obra: não precisamos buscar o extraordinário fora de nós. O extraordinário está no cotidiano, no gesto simples, no instante fugaz. Está em aprender a olhar de novo, como se fosse a primeira vez. Está em aceitar que nunca teremos todas as respostas  e que isso não é um fracasso, mas uma forma de liberdade. 

Clarice Lispector fez da literatura um espelho turvo, onde nos vemos deformados, mas também mais verdadeiros. Ao lê-la, não encontramos apenas suas palavras: encontramos a nós mesmos. E, nesse encontro, descobrimos que a vida, com toda a sua estranheza e beleza, não precisa ser decifrada. Basta ser vivida.


© Alberto Araújo

 


 

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