sexta-feira, 19 de setembro de 2025

PIÓDÃO, O PRESÉPIO ACESO NA SERRA - CRÔNICA DE ALBERTO ARAÚJO

Foi Melissa Caetano quem, no meio da rotina digital, acendeu a noite do grupo de WhatsApp. Entre mensagens rápidas e notícias apressadas, surgiu a imagem: Piódão, Portugal. 

Há imagens que não chegam apenas aos olhos: atravessam-nos como pequenas epifanias, despertando a memória do que nunca vivemos, mas já pressentimos. Numa era em que tudo corre veloz, em que as telas nos entregam fragmentos de um mundo apressado e frequentemente ruidoso, algumas visões conseguem romper a pressa e instaurar o silêncio. Foi assim, numa noite comum, que surgiu aquele retrato incomum. Não era apenas uma foto: era um chamado, um convite à contemplação. 

Melissa compartilhou a imagem, e por alguns segundos o tempo pareceu suspenso. Não era o rosto de alguém conhecido nem o registro de uma paisagem corriqueira. Era Piódão, Portugal. Uma fotografia de Rui Venâncio, colhida no imenso oceano digital, mas que possuía a força dos sonhos raros. Ali estava o vilarejo de pedra, talhado na encosta como se tivesse sido moldado pela própria mão da montanha. Um cenário que, antes de ser explicado, já se revelava como um poema visual. 

E o que é a literatura senão isso: o gesto de reconhecer beleza onde a pressa do mundo costuma não deter os olhos? Diante daquela imagem, não se tratava apenas de viajar pelo espaço, mas de atravessar uma experiência do espírito. Piódão surgia diante de nós como um presépio aceso na serra, um lugar que, mais do que existir, parecia sobreviver como guardião da lentidão, do silêncio e da luz suave que ainda resiste no planeta. 

Casas de pedra escura, telhados alinhados como páginas de um livro antigo, janelas que, iluminadas, transformavam-se em olhos atentos. As luzes, espalhadas pelas ruas estreitas e fachadas, não eram apenas lâmpadas: eram lanternas gigantes, guardiãs silenciosas da noite. Piódão é um daqueles lugares que parecem ter sido esquecidos pelo tempo, mas lembrados pela poesia. O casario se empilha em degraus, acompanhando o relevo, como se cada morador tivesse construído sua casa respeitando o desenho secreto da serra. No alto, a igreja branca com telhado vermelho ergue-se como farol, não para guiar navios, mas para lembrar aos viajantes que a fé também pode morar no silêncio das montanhas. 

O que mais impressiona não é apenas a beleza, mas a sensação de acolhimento. As luzes acesas não iluminam só as pedras, aquecem a alma. É como se cada lâmpada dissesse: “Entre, há sopa quente e histórias para contar.” Talvez seja isso que faz de Piódão um lugar tão especial: a mistura de isolamento e proximidade, de solidão e aconchego.

Quem caminha por suas ruelas à noite sente que está dentro de um presépio vivo. O som é do vento, talvez de um cão distante, e o cheiro é de terra úmida e lenha queimando. Não há pressa, buzinas ou vitrines piscando em neon. Apenas a luz amarela, suave, que escorre pelas pedras e se mistura ao verde escuro da serra. 

Num mundo onde tudo é imediato e descartável, Piódão nos lembra que há lugares que resistem. Que a beleza não precisa gritar para ser notada. Que a noite pode ser mais clara quando iluminada por pequenas lanternas, e que o silêncio pode ser mais profundo quando compartilhado. 

Piódão não é apenas um ponto no mapa. É um estado de espírito. É a prova de que a arquitetura pode ser poesia e que a luz pode ser afeto. É o tipo de lugar que, mesmo visto apenas numa tela de celular, deixa no peito uma vontade estranha: a de estar lá, de sentir o frio da serra no rosto, de ouvir o ranger das portas antigas, de se perder nas escadas de pedra e, quem sabe, encontrar-se no meio do caminho. 

E assim, entre uma mensagem e outra, o grupo de WhatsApp se transformou por alguns minutos. Não havia pressa, não havia ruído. Havia apenas Piódão, aceso como um poema, lembrando-nos que o mundo ainda guarda recantos onde a noite é feita de luz e silêncio.

 

Eis, portanto, o mistério que Piódão nos oferece: ele não é apenas um vilarejo que se visita com os pés, mas uma experiência que se percorre com o coração. Suas casas de pedra guardam a memória de séculos que resistiram à pressa e ao esquecimento. Suas luzes não iluminam apenas o caminho das ruas estreitas, mas aplacam a escuridão que muitas vezes carregamos dentro de nós. É como se cada lâmpada fosse um farol íntimo, lembrando-nos de que a vida pode ser mais simples, mais lenta e mais profunda. 

Ao olhar para Piódão, mesmo através de uma tela, somos convidados a reaprender o sentido da presença. Ali, o silêncio não é vazio, mas plenitude; a solidão não é ausência, mas abrigo; a noite não é sombra, mas claridade doce. Talvez por isso tantas pessoas se emocionem ao vê-lo, mesmo sem jamais ter caminhado por suas ruelas. O vilarejo revela, na sua singeleza, a força de uma beleza que não precisa competir com nada — porque já é inteira. 

Num mundo saturado de barulhos, onde o imediato dita os ritmos, Piódão se ergue como um contraponto: uma oração feita em pedra e luz. Ele nos lembra que ainda há recantos no planeta em que o humano e o natural dialogam em harmonia, em que a arquitetura não é arrogância, mas poesia. 

E quando, mais tarde, o grupo de WhatsApp retomou seu fluxo habitual de mensagens, algo permanecia. Havia uma faísca discreta, uma chama pequena que a imagem deixara acesa em cada um. Era a lembrança de que o mundo ainda guarda lugares em que o tempo se curva à eternidade.

Piódão, o presépio aceso na serra, continua ali, guardado pela montanha, iluminando não apenas suas próprias noites, mas também o coração de quem ousa detê-lo com o olhar. Porque, afinal, há geografias que não pertencem apenas à terra: pertencem à alma.

© Alberto Araújo

 


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