Manhã - A mesa era simples, de madeira
antiga, e sobre ela repousava uma toalha branca com rendas discretas. O aroma
do café subia em espirais lentas, como se quisesse tocar o teto antes de se
dissolver no ar.
Cecília, com seu olhar de quem escuta
o vento, disse: — O dia começa como um verso inédito. É preciso cuidado para
não rasgar o papel do tempo.
Clarice, segurando a xícara com as
duas mãos, respondeu: — E se o verso não vier? Eu bebo o café. O amargo me lembra
que estou viva.
O silêncio entre elas não era vazio —
era um campo fértil. Cecília sorriu, como quem vê uma flor abrir-se no
pensamento: — O café é como a poesia: quente, breve, mas deixa um rastro que
acompanha o dia inteiro.
Clarice olhou pela janela, onde a luz
ainda era tímida: — E às vezes é no rastro que a gente encontra a vida. Não no
gole, nem no verso, mas no que fica depois.
Lá fora, o mundo começava. Dentro,
duas mulheres bebiam café e, sem pressa, inventavam a eternidade.
Tarde - A luz dourada atravessava a janela,
tingindo a toalha de renda com um tom de mel antigo. O café havia acabado, e no
lugar dele, um bule de chá soltava um perfume suave de ervas.
Cecília, olhando para o céu que se
desfazia em cores, disse: — O entardecer é um poema que se escreve sozinho, sem
pressa, e que sempre termina em silêncio.
Clarice, mexendo lentamente a colher
na xícara, respondeu: — E é nesse silêncio que a gente se encontra. Não no que
se diz, mas no que fica guardado.
O vapor do chá subia mais lento que o
do café da manhã, como se o tempo tivesse aprendido a caminhar descalço.
Cecília sorriu: — Há dias que são como versos longos, outros como haicais. Hoje
foi um livro inteiro.
Clarice fechou os olhos por um
instante, como quem prova uma lembrança: — E amanhã será outra página. Talvez
em branco. Talvez manchada de café. Mas sempre viva.
Lá fora, as primeiras estrelas
surgiam. Dentro, duas mulheres continuavam a conversar — não para preencher o
tempo, mas para torná-lo eterno.
Noite - A janela agora era um espelho
negro, refletindo apenas as duas. Lá fora, o vento arrastava folhas, e um cão
distante quebrava o silêncio com um latido breve.
Cecília, com a voz baixa, disse: — A
noite é um manto que cobre as palavras, mas deixa à mostra os pensamentos.
Clarice, olhando para o fundo vazio da
xícara, respondeu: — É quando não há mais nada para beber que a gente percebe a
sede verdadeira.
O relógio marcava horas que já não
importavam. Cecília fechou os olhos por um instante: — Sempre achei que a
poesia fosse feita de luz. Mas talvez seja feita também de sombra.
Clarice sorriu de canto, como quem
guarda um segredo: — A sombra é o avesso da luz. E às vezes é no avesso que a
gente se encontra inteira.
O silêncio voltou, mas agora era
denso, quase palpável. Do lado de fora, a madrugada se estendia. Do lado de
dentro, duas mulheres, sem pressa de dormir, continuavam a beber — não café,
não chá, mas a eternidade que haviam criado juntas.
© Alberto Araújo
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