domingo, 7 de setembro de 2025

UM DIA INTEIRO DE CONVERSA DIÁLOGO ENTRE CECÍLIA MEIRELES E CLARICE LISPECTOR - @ ALBERTO ARAÚJO

Manhã - A mesa era simples, de madeira antiga, e sobre ela repousava uma toalha branca com rendas discretas. O aroma do café subia em espirais lentas, como se quisesse tocar o teto antes de se dissolver no ar.

 

Cecília, com seu olhar de quem escuta o vento, disse: — O dia começa como um verso inédito. É preciso cuidado para não rasgar o papel do tempo.

 

Clarice, segurando a xícara com as duas mãos, respondeu: — E se o verso não vier? Eu bebo o café. O amargo me lembra que estou viva.

 

O silêncio entre elas não era vazio — era um campo fértil. Cecília sorriu, como quem vê uma flor abrir-se no pensamento: — O café é como a poesia: quente, breve, mas deixa um rastro que acompanha o dia inteiro.

 

Clarice olhou pela janela, onde a luz ainda era tímida: — E às vezes é no rastro que a gente encontra a vida. Não no gole, nem no verso, mas no que fica depois.

 

Lá fora, o mundo começava. Dentro, duas mulheres bebiam café e, sem pressa, inventavam a eternidade.

 

Tarde - A luz dourada atravessava a janela, tingindo a toalha de renda com um tom de mel antigo. O café havia acabado, e no lugar dele, um bule de chá soltava um perfume suave de ervas.

 

Cecília, olhando para o céu que se desfazia em cores, disse: — O entardecer é um poema que se escreve sozinho, sem pressa, e que sempre termina em silêncio.

 

Clarice, mexendo lentamente a colher na xícara, respondeu: — E é nesse silêncio que a gente se encontra. Não no que se diz, mas no que fica guardado.

O vapor do chá subia mais lento que o do café da manhã, como se o tempo tivesse aprendido a caminhar descalço. Cecília sorriu: — Há dias que são como versos longos, outros como haicais. Hoje foi um livro inteiro.

 

Clarice fechou os olhos por um instante, como quem prova uma lembrança: — E amanhã será outra página. Talvez em branco. Talvez manchada de café. Mas sempre viva.

 

Lá fora, as primeiras estrelas surgiam. Dentro, duas mulheres continuavam a conversar — não para preencher o tempo, mas para torná-lo eterno.

 

Noite - A janela agora era um espelho negro, refletindo apenas as duas. Lá fora, o vento arrastava folhas, e um cão distante quebrava o silêncio com um latido breve.

 

Cecília, com a voz baixa, disse: — A noite é um manto que cobre as palavras, mas deixa à mostra os pensamentos.

 

Clarice, olhando para o fundo vazio da xícara, respondeu: — É quando não há mais nada para beber que a gente percebe a sede verdadeira.

 

O relógio marcava horas que já não importavam. Cecília fechou os olhos por um instante: — Sempre achei que a poesia fosse feita de luz. Mas talvez seja feita também de sombra.

 

Clarice sorriu de canto, como quem guarda um segredo: — A sombra é o avesso da luz. E às vezes é no avesso que a gente se encontra inteira.

 

O silêncio voltou, mas agora era denso, quase palpável. Do lado de fora, a madrugada se estendia. Do lado de dentro, duas mulheres, sem pressa de dormir, continuavam a beber — não café, não chá, mas a eternidade que haviam criado juntas.

 

© Alberto Araújo

 


 

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