Desde que o mundo é mundo, há quem olhe para o céu e deseje mais do que contemplar estrelas. Há quem não se contente em medir distâncias, mas queira atravessá-las. Ícaro, filho de Dédalo, não queria apenas escapar do labirinto — queria provar que o impossível era apenas uma palavra inventada por quem nunca tentou. Com asas feitas de cera e ambição, alçou voo rumo ao sol, ignorando os avisos do pai e os limites da física. O final, todos conhecem: a queda. Mas e se, em vez de tragédia, víssemos nesse voo um manifesto? Um grito ancestral que ecoa até hoje em cada um de nós, cada vez que ousamos sonhar acima da linha do horizonte.
Ícaro vive em quem troca o certo pelo sonho. Está no jovem que abandona o emprego estável para abrir uma cafeteria onde o café é servido com vinil tocando jazz. Na mulher que decide voltar a estudar aos 50, porque sempre quis ser arqueóloga e não aceita que o tempo seja uma sentença. Ícaro é o artista que pinta murais em muros cinzentos, mesmo sabendo que podem ser apagados na manhã seguinte. É o empreendedor que aposta tudo numa ideia que ninguém entende, ainda. É o cientista que passa noites em claro perseguindo uma hipótese improvável. É o atleta que treina sozinho, na chuva, acreditando que um dia cruzará a linha de chegada.
Na era dos drones, foguetes privados e algoritmos que prometem prever o futuro, o desejo de voar mudou de forma, mas não de essência. Hoje, voar pode ser criar algo que ninguém criou, amar alguém que ninguém entende, ou simplesmente dizer “não” quando todos esperam um “sim”. Pode ser mudar de cidade sem ter todas as respostas, escrever um livro sem saber se alguém vai ler, ou defender uma ideia que parece absurda até que se torne óbvia.
Mas como no mito, há sempre o risco da queda. A cera derrete. O sol não perdoa. E o mundo, muitas vezes, prefere quem rasteja. Há quem olhe para os que ousam e diga: “Eu avisei”. Há quem confunda prudência com medo e segurança com vida. Mas viver é, inevitavelmente, aproximar-se de algum sol. E todo voo verdadeiro carrega em si a possibilidade da queda.
Talvez o erro de Ícaro não tenha sido voar alto demais — e sim viver num mundo que não soube acolher sua ousadia. Porque cair faz parte. O que não pode é deixar de tentar. Ícaro não morreu por arrogância, morreu por esperança. E isso, no fundo, é o que nos move.
Sonhar é aceitar que haverá vento contra, que as asas podem se partir, que o mar estará lá embaixo esperando. Mas também é saber que, por alguns instantes, estaremos suspensos entre o que somos e o que podemos ser. E nesse intervalo, nesse silêncio entre o voo e a queda, há uma liberdade que nenhum chão pode oferecer.
Que nossas asas sejam feitas de sonhos mais resistentes — não de cera, mas de coragem, paciência e fé. Que aprendamos a reparar as penas danificadas, a ajustar o voo quando o vento muda, a reconhecer que cada tentativa nos leva mais longe. E que, mesmo com medo da queda, a gente continue voando. Porque, no fim, não é o pouso que nos define, mas a coragem de ter partido.
©
Alberto Araújo
SOBRE A IMAGEM É PINTURA DE JACOB GOUWY
VOO
DE ÍCARO
Autor - Jacob Peter Gowy (cerca de 1610–após
1644)
Título
inglês: De val van Icarus (Ovidius, Metamorfosen, VIII, 183-235)
Gênero:
pintura mitológica
Descrição
- English: The fall of Icarus, oil on canvas, 195 x 180 cm, Madrid, Prado
Museum
Data entre 1635 e 1637
Técnica óleo sobre tela
Dimensões altura: 195 cm Editar isso no Wikidata;
largura: 180 cm
Coleção:
Museu do Prado
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Jacob Peter Gouwy foi um pintor flamengo barroco conhecido por pinturas e retratos históricos. Colaborou com o pintor Peter Paul Rubens e passou algum tempo na Inglaterra, onde atuou como pintor de retratos. Pode ser considerado um dos pioneiros da pintura de cavalos por uma de suas obras mais famosas, representando um altivo cavalo na Inglaterra. Pouco se sabe sobre a vida e a carreira de Jacob Peter Gouwy. Fora discípulo de Paul van Overbeeck em Antuérpia. Registrou-se como aprendiz na Associação de São Lucas de Antuérpia no ano de 1632-33. Tornou-se um mestre da Aliança de Antuérpia entre 1636 e 1637.
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