A tarde se alongava como um suspiro preguiçoso, desses que o tempo dá quando não tem pressa de ir embora. No ateliê, minha esposa, pintora, artista plástica que traduz o mundo em cores, estava diante de uma tela grande, mergulhada num silêncio que não era ausência de som, mas presença de concentração. O pincel, obediente e livre ao mesmo tempo, deslizava sobre a superfície branca, deixando rastros que pareciam nascer de um lugar que não se vê.
Do meu escritório, chegava até mim a música. Não qualquer música, mas aquela melodia que carrega em si o peso doce da nostalgia: Summer of ’42. As notas atravessavam as paredes como um vento morno vindo do mar, trazendo consigo um cheiro imaginário de sal e madeira úmida. Fechei os olhos e, por um instante, não estava mais ali.
A música me levou para longe, para uma ilha banhada pelo sol de 1942, onde um garoto chamado Hermie descobria, entre a timidez e o desejo, que crescer é também aprender a perder. Dorothy, com sua beleza serena e a tristeza que a guerra lhe impusera, era para ele uma luz e um mistério. E aquele verão, como todos os verões que importam, não se repetiria.
Enquanto a trilha seguia, percebi que minha esposa pintava no mesmo compasso das notas. Talvez ela também estivesse em outra época, em outro lugar. Seus traços eram firmes, mas havia uma delicadeza quase cinematográfica na forma como as cores se encontravam. Pensei que, de algum modo, ela estava pintando não apenas formas e luzes, mas lembranças que nunca viveu, como se fossem dela.
Eu, sentado à minha mesa, deixei que a música me pintasse por dentro. Cada acorde parecia abrir uma janela para um pedaço esquecido da minha própria juventude, não exatamente igual ao de Hermie, mas com a mesma mistura de descoberta e melancolia. É curioso como certas histórias, mesmo distantes no tempo e no espaço, encontram um eco íntimo em nós.
O dia foi se apagando devagar. O sol, já baixo, tingia de dourado as paredes e o rosto concentrado da minha esposa. Quando a noite chegou, senti que aquele clima não podia simplesmente se dissipar. Levantei-me, fui até a estante e peguei o nosso DVD de Verão de 42. Ela sorriu ao ver a capa, como se entendesse exatamente o que eu queria dizer sem precisar de palavras.
Colocamos o disco no aparelho. A sala se encheu com o som inicial da trilha, agora não mais apenas como música de fundo, mas como parte viva da narrativa. Sentamos lado a lado, e a luz azulada da TV iluminava nossos rostos. Lá estava Hermie, com seu olhar tímido e curioso; lá estava Dorothy, com sua beleza serena e a tristeza que a guerra lhe impusera.
Assistir ao filme depois de ter passado a tarde imerso na música foi como abrir uma carta antiga e encontrar dentro dela uma fotografia que já conhecíamos de memória, mas que ainda assim nos surpreende. Cada cena parecia mais intensa, cada silêncio mais eloquente. Quando chegou o momento em que Dorothy e Hermie se encontram naquela noite silenciosa, senti um nó na garganta. Não era apenas a história deles, era a lembrança de todos os verões que já tivemos e que, de alguma forma, ficaram para trás.
Ao final, quando Hermie lê a carta deixada por Dorothy, percebi que minha esposa havia parado de respirar por um instante, como se quisesse guardar cada palavra. E eu também fiquei ali, quieto, deixando que a última nota da música se misturasse ao som distante da noite lá fora.
Desligamos a TV, mas não falamos nada. Não era preciso. Ficamos sentados, cada um com suas próprias imagens e memórias, mas unidos por aquele mesmo sentimento que o filme desperta: a certeza de que a vida é feita de instantes que não voltam, mas que permanecem vivos dentro de nós.
E assim, entre pincéis, notas e
silêncios, percebi que o nosso próprio “verão de 42” não precisava ter
acontecido em 1942, nem numa ilha distante. Ele estava ali, naquela noite
simples, em nosso quarto, com a TV gigante e o DVD rodando e a vida acontecendo
em silêncio.
SUMMER OF ’42 – RETRATO DE UM VERÃO QUE NUNCA SE APAGA
Há filmes que não se contentam em contar uma história: eles a sussurram, como quem abre um álbum de memórias e deixa que o cheiro do tempo escape pelas páginas. Summer of ’42 é um desses. Lançado em 1971, mas nascido muito antes, no verão real de 1942, ele carrega nas imagens e na música a delicadeza de um instante que não volta e que, justamente por isso, se torna eterno.
Baseado nas lembranças do roteirista Herman “Hermie” Raucher, o filme é menos sobre fatos e mais sobre sensações. É a lembrança de um adolescente que, entre a brisa salgada de Nantucket e o calor de um sol preguiçoso, descobre que o amor pode ser tão doce quanto doloroso. Dorothy, a jovem mulher que ele observa de longe, é ao mesmo tempo presença e ausência: bela, serena, mas marcada pela sombra da guerra que levou seu marido para longe.
Robert Mulligan, o diretor, filma como quem não quer acordar o passado — prefere tocá-lo com a ponta dos dedos, deixando que cada cena respire. Gary Grimes, no papel de Hermie, carrega no olhar a mistura de curiosidade e insegurança que define a adolescência. Jennifer O’Neill, como Dorothy, é a imagem da graça melancólica, e sua presença na tela é como uma onda que avança e recua, deixando marcas invisíveis na areia.
A trama é simples, mas o que importa não é o que acontece, e sim o que fica. Há os amigos, Oscy e Benjie, com suas trapalhadas e descobertas; há as tentativas desajeitadas de conquistar meninas; há o manual de sexo encontrado por acaso, lido como se fosse um mapa para a vida adulta. Mas, acima de tudo, há aquela noite silenciosa, quando Dorothy, ferida pela notícia da morte do marido, encontra em Hermie não um homem, mas um porto breve onde repousar a dor.
A cena final não é um adeus ruidoso, mas um bilhete deixado na porta, uma carta que fala de compreensão e de esperança. Hermie nunca mais a vê. E talvez seja justamente isso que mantém viva a lembrança: a ausência que não se preenche, o espaço que o tempo não ocupa.
A música de Michel Legrand é o fio invisível que costura tudo. Suas notas não apenas acompanham a história — elas a contam, com uma melancolia que não é tristeza pura, mas a consciência de que a beleza é sempre passageira.
Summer of ’42 não é apenas um filme sobre o primeiro amor. É sobre o instante em que deixamos de ser quem éramos, sem ainda saber quem vamos ser. É sobre a descoberta de que crescer é, inevitavelmente, aprender a perder. E, no entanto, é também sobre como certas perdas se transformam em tesouros guardados para sempre.
Talvez por isso, mais de cinquenta anos depois, ele ainda fale conosco. Porque todos temos o nosso próprio “verão de 42” — aquele momento que não volta, mas que permanece, intacto, no lugar mais silencioso da memória.
© Alberto Araújo
Nenhum comentário:
Postar um comentário