CONCEIÇÃO
EVARISTO - QUANDO A LITERATURA ESCOLHE
UFMG
homenageia Conceição Evaristo com título Honoris Causa
Crônica Literário-jornalístico de Alberto Araújo
Na segunda-feira, 29 de setembro de 2025, Belo Horizonte se prepara para um daqueles encontros em que o tempo parece se dobrar sobre si mesmo. No auditório da Reitoria da UFMG, não será apenas uma cerimônia acadêmica: será a celebração de uma vida inteira dedicada à palavra, à memória e à resistência. Conceição Evaristo receberá o título de Doutora Honoris Causa, e, com ela, sobem ao palco todas as vozes que sua escrita soube acolher, as vozes das mulheres, das favelas, dos becos, das memórias que insistem em não se calar.
Conceição, em seu depoimento, disse que “a literatura me escolheu”. Há algo de destino nessa frase, mas também há luta. Porque não basta ser escolhida: é preciso aceitar o chamado, e mais ainda, é preciso abrir caminho onde antes só havia silêncio. A menina que cresceu na periferia de Belo Horizonte, filha de uma mãe que lhe ensinou o gosto pela leitura, não poderia imaginar que um dia voltaria à sua cidade natal para ser homenageada como uma das maiores vozes da literatura brasileira contemporânea. Mas talvez pudesse sonhar e sonhou.
A crônica da vida de Conceição é feita de deslocamentos. Nos anos 1970, ela deixa Minas e vai para o Rio de Janeiro, onde se forma em Letras e se torna professora da rede pública. Mais tarde, mergulha nos estudos acadêmicos, escreve dissertação e tese, dialoga com autores afro-brasileiros e africanos, e constrói uma obra que é, ao mesmo tempo, denúncia e poesia. Sua escrita não se contenta em narrar: ela convoca, ela exige, ela emociona.
Quem leu Ponciá Vicêncio sabe que não se trata apenas de um romance. É um mergulho em memórias fragmentadas, em tempos que se cruzam, em dores que se repetem de geração em geração. Quem percorreu Becos da memória reconhece ali a pulsação de uma comunidade ameaçada pela remoção, mas também a força de mulheres que resistem. Quem se deixou tocar por Olhos d’água ou pelas Insubmissas lágrimas de mulheres sabe que Conceição escreve com a ternura de quem acaricia e com a firmeza de quem denuncia.
Não é à toa que sua obra atravessou fronteiras, foi traduzida, estudada, celebrada. Não é à toa que sua voz ecoou em Paris, em universidades estrangeiras, em prêmios literários. Mas talvez o mais importante seja perceber que, mesmo diante do reconhecimento internacional, Conceição nunca deixou de escrever a partir de um lugar muito específico: o da mulher negra brasileira, que carrega na pele e na memória as marcas de uma história de exclusão, mas que também carrega a potência da criação, da invenção, da palavra que resiste.
A UFMG, ao conceder-lhe o título de Doutora Honoris Causa, não apenas homenageia uma escritora. Reconhece uma trajetória que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Reconhece a menina que sonhava em Belo Horizonte, a professora que alfabetizou no Rio, a pesquisadora que dialogou com a tradição afro-diaspórica, a autora que deu voz a tantas outras mulheres. Reconhece, sobretudo, que a literatura brasileira não pode mais ser pensada sem a presença de Conceição Evaristo.
Há uma beleza simbólica nesse retorno. A universidade que um dia parecia distante da menina da periferia agora a recebe como doutora. É como se o tempo fechasse um ciclo, mas não para encerrá-lo: para abri-lo ainda mais. Porque Conceição continua escrevendo, continua publicando, continua nos lembrando de que a literatura não é apenas arte, mas também gesto político, ato de memória, exercício de liberdade.
Em 2024, ela tomou posse na Academia Mineira de Letras. Em 2023, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano. Antes disso, já havia sido celebrada em exposições, homenageada em prêmios, traduzida em várias línguas. Mas talvez nada seja tão significativo quanto este momento em que a universidade pública, espaço tantas vezes negado a corpos negros e periféricos, se curva diante de sua grandeza.
Conceição Evaristo não escreve para adornar estantes. Sua literatura é feita para incomodar, para emocionar, para abrir feridas e, ao mesmo tempo, curá-las. É feita para lembrar que a história do Brasil não pode ser contada sem as vozes que foram silenciadas. É feita para que meninas negras, em qualquer periferia do país, possam se ver refletidas em páginas que lhes dizem: “vocês também podem, vocês também são”.
Na noite da outorga, quando os aplausos ecoarem no auditório da Reitoria, não será apenas Conceição quem receberá a homenagem. Será sua mãe, que lhe ensinou a amar os livros. Serão as mulheres de suas histórias, que choraram lágrimas insubmissas. Serão as comunidades que resistiram nos becos da memória. Será, enfim, a própria literatura brasileira, que se engrandece ao reconhecer que sua força está na diversidade de vozes que a compõem.
E assim,
entre passado e presente, entre menina e doutora, entre sonho e realidade,
Conceição Evaristo nos lembra de que a literatura não é apenas escolha: é
destino, é travessia, é vida.
© Alberto
Araújo
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