domingo, 21 de setembro de 2025

O ANJO DA MEMÓRIA - CRÕNICA DE ALBERTO ARAÚJO


Algumas imagens chegam até nós como se fossem mensagens atravessando os séculos. Vistas ao acaso em uma rede social, elas nos arrancam do presente imediato e nos conduzem a um outro tempo. Foi o que aconteceu com este recorte de Versalhes: um detalhe de telhado, molduras douradas e, sustentado sobre a balaustrada, um anjo de pedra que ergue na mão não uma trombeta, mas um pergaminho. 

Este gesto aparentemente simples altera toda a leitura simbólica. Não se trata da Fama que proclama com sons, mas da Memória que guarda em escrita. O anjo não anuncia; ele preserva. É guardião dos feitos, transmissor de lembranças, arauto silencioso da História.

Em Versalhes, nada foi feito ao acaso. Quando Luís XIV (1638–1715) decidiu transformar o antigo pavilhão de caça em palácio régio, ele não queria apenas uma residência: planejava erigir um monumento ao seu próprio reinado. Para tanto, convocou os maiores artistas da época — Charles Le Brun, responsável pela iconografia; André Le Nôtre, arquiteto dos jardins; e escultores como François Girardon, Antoine Coysevox, Gaspard e Balthazar Marsy — que juntos criaram um programa decorativo grandioso, onde cada figura tinha significado preciso. 

Esse anjo com pergaminho participa dessa linguagem. Em uma época em que o poder se afirmava tanto pela espada quanto pela imagem, a História tornava-se instrumento político. O pergaminho em mãos aladas nos lembra que as vitórias e glórias de um soberano não existem sem registro. O som da trombeta pode se dissipar no vento; a escrita, gravada em papel ou pedra, permanece. 

A escolha não é banal: Luís XIV entendia a força da memória. Seu reinado foi marcado por uma impressionante produção de crônicas, medalhas, pinturas e esculturas, tudo destinado a imortalizar sua figura. O anjo, portanto, é símbolo dessa vontade: mais do que proclamar, é preciso escrever a glória, para que o tempo não a consuma. 

Séculos se passaram. O rei que desejou eternidade para seu nome partiu em 1715. O palácio atravessou guerras, crises, revoluções. A França mudou, e Versalhes deixou de ser residência real para tornar-se testemunho de uma época. Muitos dos feitos que aquele pergaminho alegórico deveria conservar foram esquecidos pela maioria. 

E, no entanto, a escultura permanece. O anjo continua ali, sustentando seu rolo silencioso, como se vigiasse não mais a glória de um rei, mas a permanência da própria memória humana. Hoje, sua mensagem já não é propaganda régia, mas advertência universal: o que não se escreve, o tempo apaga. 

Essa é a força desta imagem. Vista de relance, poderia parecer apenas ornamento; contemplada com atenção, revela-se metáfora do destino. O anjo não toca trombetas passageiras: segura nas mãos o testemunho da História. Ele nos lembra que reis passam, impérios ruem, mas a palavra preservada atravessa séculos. 

E é por isso que este detalhe de Versalhes, reencontrado em plena era digital, causa tanto impacto. O que Luís XIV quis guardar para si, acabou sendo legado ao mundo: a certeza de que, contra o esquecimento, só a memória salva.

O anjo de pedra, com seu pergaminho eterno, não fala de glórias mortas, mas do triunfo silencioso da escrita sobre o tempo.

© Alberto Araújo



 

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